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@ Leitura Aleatória 2.0
2025-04-10 01:22:15O dorama O Lucro do Amor, disponível na Amazon Prime, oferece um ponto de partida para reflexões sobre as transformações culturais na Coreia do Sul, especialmente no que diz respeito à representação de relações afetivas e valores tradicionais. Enquanto analiso a obra, busco explorar como os arquétipos clássicos dos dramas coreanos — marcados por conservadorismo e estruturas patriarcais — estão sendo ressignificados sob a influência de movimentos sociais contemporâneos, como o feminismo e discussões globais sobre liberdade individual. A crítica central recai sobre a normalização de relacionamentos abertos e a relativização de promessas, temas que, embora raros na produção asiática, ecoam debates ocidentais.
Arquétipos Tradicionais e a Evolução dos Doramas
Historicamente, os doramas sul-coreanos consolidaram narrativas pautadas em dualidades rígidas: uma protagonista frágil, porém virtuosa (bondade, perseverança e sacrifício como marcas), e um protagonista masculino idealizado, detentor de poder intelectual ou social. Esses estereótipos refletiam valores confucionistas, nos quais a honra, o dever familiar e a estabilidade social eram pilares inegociáveis. A virtude feminina, por exemplo, era frequentemente associada à abnegação, enquanto o homem ocupava um papel de provedor e protetor.
A Ruptura em O Lucro do Amor
O drama em questão subverte parcialmente essa lógica. Se, por um lado, mantém a figura do "super-homem" — representado por Kim Ji Uk, carismático e resoluto —, por outro, introduz tensões modernas. A protagonista, em vez de se apoiar em ingenuidade, toma decisões pautadas em autonomia individual, ainda que isso implique romper compromissos afetivos. O conflito central gira em torno de sua escolha de se afastar de Ji Uk, justificada pela crença de que ele está com ela apenas por cumprir uma promessa feita à mãe da protagonista.
Aqui reside uma das contradições da trama: embora o personagem declare repetidamente seu amor genuíno, a protagonista insiste em invalidar seus sentimentos, reduzindo-os a um mero dever. Essa narrativa, embora pretenda valorizar a independência Ji Uk em não ficar preso em promessas, acaba por negligenciar a complexidade emocional dos personagens, tratando a quebra de promessas como um ato libertador, sem ponderar seu impacto ético. A mensagem que emerge — "sua vida, suas regras" — pode ser lida como um incentivo ao individualismo radical, em que compromissos são descartáveis em prol da autorrealização.
Relacionamentos Abertos e a Influência Cultural
O aspecto mais polêmico, contudo, é a introdução sutil de relacionamentos não monogâmicos. Dois personagens secundários adotam uma dinâmica aberta, retratada sem críticas ou consequências dramáticas significativas. Essa normalização, ainda que discreta, é emblemática de uma tendência global que vem permeando a produção midiática sul-coreana, tradicionalmente avessa a temas considerados tabus.
É importante contextualizar: a Coreia do Sul, apesar de sua indústria de manhwas e mangás explorar conteúdos considerados transgressores, mantinha nas novelas uma linha conservadora, reforçando família e matrimônio como instituições sagradas. A abertura a temas como poliamor ou fluididade de compromissos sugere uma assimilação de pautas progressistas, possivelmente influenciada por pressões internacionais e por movimentos locais que desafiam normas de gênero.
Crítica à Narrativa e Impacto Social
A fragilidade do dorama está na superficialidade com que aborda essas questões. A protagonista não enfrenta dilemas morais profundos; sua decisão parece motivada mais por uma rebeldia individualista do que por uma reflexão sobre autonomia versus responsabilidade afetiva. Ao romantizar a quebra de promessas como sinônimo de empoderamento, a trama banaliza a noção de honra — historicamente central na cultura coreana —, substituindo-a por uma ética utilitarista ("se não me serve, descarto").
Além disso, a representação de relacionamentos abertos carece de nuance. Enquanto no Ocidente tais dinâmicas são debatidas em camadas (desafios emocionais, ciúme, comunicação), aqui são apresentadas como meras escolhas lifestyle, desprovidas de conflito. Essa simplificação não apenas empobrece a narrativa, mas também serve como vetor de uma agenda ideológica que, para além do entretenimento, busca ressignificar valores sociais.
Entre a Inovação e a Desconstrução
O Lucro do Amor é um sintoma de uma Coreia do Sul em transição, onde tradição e modernidade colidem. Se, por um lado, é válido que as produções culturais reflitam a diversidade de pensamento, por outro, é preocupante a forma acrítica com que certos temas são inseridos, especialmente aqueles que minam a coesão social em nome de um individualismo pós-moderno.
A infiltração de pautas progressistas na mídia coreana não é neutra: assim como ocorreu no Ocidente, há riscos de que a erosão de instituições como a família e a promessa como pacto moral alimentem uma cultura de efemeridade e descompromisso. Enquanto espectadores, cabe questionar se essa "evolução" das narrativas realmente amplia o diálogo humano ou se, sob o disfarce de liberdade, nos empurra para uma sociedade cada vez mais fragmentada — onde o amor, longe de ser um lucro, torna-se uma transação descartável.
Nota Final:
O dorama, embora tecnicamente competente, falha em equilibrar inovação com profundidade. Serve mais como manifesto de uma agenda do que como obra que honre a complexidade das relações humanas — um alerta sobre os rumos da cultura pop globalizada.