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# Problemas com Russell Kirk A idéia central da “política da prudência[^1]” de Russell Kirk me parece muito correta, embora tenha sido melhor formulada pior no seu enorme livro do que em uma pequena frase do joanadarquista Lucas Souza: “o conservadorismo é importante, porque tem muita gente com idéia errada por aí, e nós podemos não saber distingüi-las”. Porém, há alguns problemas que precisam ser esclarecidos, ou melhor explicados, e que me impedem de enxergar os seus argumentos como refutação final do meu já tão humilde (embora feroz) anarquismo. São eles: I Percebo alguma coisa errada, não sei bem onde, entre a afirmação de que toda ideologia é ruim, ou “todas as ideologias causam confusão[^2]”, e a proposta conservadora de “conservar o mundo da ordem que herdamos, ainda que em estado imperfeito, de nossos ancestrais[^3]”. Ora, sem precisar cair em exemplos como o do partido conservador inglês -- que conservava a política inglesa sempre onde estava, e se alternava no governo com o partido trabalhista, que a levava cada vez mais um pouco à esquerda --, está embutida nessa frase, talvez, a idéia, que ao mesmo tempo é clara e ferrenhamente combatida pelos próprios conservadores, de que a história é da humanidade é uma história de progresso linear rumo a uma situação melhor. Querer conservar o mundo da ordem que herdamos significa conservar também os vários erros que podem ter sido cometidos pelos nossos ancestrais mais recentes, e conservá-los mesmo assim, acusando toda e qualquer tentativa de propôr soluções a esses erros de ideologia? Ou será que conservar o mundo da ordem é escolher um período determinado que seja tido como o auge da história humana e tentar restaurá-lo em nosso próprio tempo? Não seria isto ideologia? Ou, ainda, será que conservar o mundo da ordem é selecionar, entre vários períodos do passado, alguns pedaços que o conservador considerar ótimos em cada sociedade, fazer dali uma mistura de sociedade ideal baseada no passado e então tentar implementá-la? Quem saberia dizer quais são as partes certas? II Sobre a questão do que mantém a sociedade civil coesa, Russell Kirk, opondo-a à posição libertária de que o nexo da sociedade é o autointeresse, declara que a posição conservadora é a de que “a sociedade é uma comunidade de almas, que une os mortos, os vivos e os ainda não nascidos, e que se harmoniza por aquilo que Aristóteles chamou de amizade e os cristãos chamam de caridade ou amor ao próximo”. Esta é uma posição muito correta, mas me parece estar em contradição com a defesa do Estado que ele faz na mesma página e na seguinte. O que me parece errado é que a sociedade não pode ser, ao mesmo tempo, uma “comunidade baseada no amor ao próximo” e uma comunidade que “requer não somente que as paixões dos indivíduos sejam subjugadas, mas que, mesmo no povo e no corpo social, bem como nos indivíduos, as inclinações dos homens, amiúde, devam ser frustradas, a vontade controlada e as paixões subjugadas” e, pior, que “isso somente pode ser feito por um poder exterior”. Disto aí podemos tirar que, da mesma forma que Kirk define a posição libertária como sendo a de que o autointeresse é que mantém a sociedade civil coesa, a posição conservadora seria então a de que essa coesão vem apenas do Estado, e não de qualquer ligação entre vivos e mortos, ou do amor ao próximo. Já que, sem o Estado, diz, ele, citando Thomas Hobbes, a condição do homem é “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”? [^1]: este é o nome do livro e também um outro nome que ele dá para o próprio conservadorismo (p.99). [^2]: p. 101 [^3]: p. 102