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# comentário pertinente de Olavo de Carvalho sobre atribuições indevidas de acontecimentos à "ordem espontânea" Eis aqui um exemplo entre outros mil, extraído das minhas apostilas de aulas, de como se analisam as relações entre fatores deliberados e casuais na ação histórica. O sr, Beltrão está INFINITAMENTE ABAIXO da possibilidade de discutir essas coisas, e por isso mesmo me atribui uma simploriedade que é dele próprio e não minha: Já citei mil vezes este parágrafo de Georg Jellinek e vou citá-lo de novo: “Os fenômenos da vida social dividem-se em duas classes: aqueles que são determinados essencialmente por uma vontade diretriz e aqueles que existem ou podem existir sem uma organização devida a atos de vontade. Os primeiros estão submetidos necessariamente a um plano, a uma ordem emanada de uma vontade consciente, em oposição aos segundos, cuja ordenação repousa em forças bem diferentes.” Essa distinção é crucial para os historiadores e os analistas estratégicos não porque ela é clara em todos os casos, mas precisamente porque não o é. O erro mais comum nessa ordem de estudos reside em atribuir a uma intenção consciente aquilo que resulta de uma descontrolada e às vezes incontrolável combinação de forças, ou, inversamente, em não conseguir enxergar, por trás de uma constelação aparentemente fortuita de circunstâncias, a inteligência que planejou e dirigiu sutilmente o curso dos acontecimentos. Exemplo do primeiro erro são os Protocolos dos Sábios de Sião, que enxergam por trás de praticamente tudo o que acontece de mau no mundo a premeditação maligna de um número reduzidos de pessoas, uma elite judaica reunida secretamente em algum lugar incerto e não sabido. O que torna essa fantasia especialmente convincente, decorrido algum tempo da sua publicação, é que alguns dos acontecimentos ali previstos se realizam bem diante dos nossos olhos. O leitor apressado vê nisso uma confirmação, saltando imprudentemente da observação do fato à imputação da autoria. Sim, algumas das idéias anunciadas nos Protocolos foram realizadas, mas não por uma elite distintamente judaica nem muito menos em proveito dos judeus, cuja papel na maioria dos casos consistiu eminentemente em pagar o pato. Muitos grupos ricos e poderosos têm ambições de dominação global e, uma vez publicado o livro, que em certos trechos tem lances de autêntica genialidade estratégica de tipo maquiavélico, era praticamente impossível que nada aprendessem com ele e não tentassem por em prática alguns dos seus esquemas, com a vantagem adicional de que estes já vinham com um bode expiatório pré-fabricado. Também é impossível que no meio ou no topo desses grupos não exista nenhum judeu de origem. Basta portanto um pouquinho de seletividade deformante para trocar a causa pelo efeito e o inocente pelo culpado. Mas o erro mais comum hoje em dia não é esse. É o contrário: é a recusa obstinada de enxergar alguma premeditação, alguma autoria, mesmo por trás de acontecimentos notavelmente convergentes que, sem isso, teriam de ser explicados pela forca mágica das coincidências, pela ação de anjos e demônios, pela "mão invisível" das forças de mercado ou por hipotéticas “leis da História” ou “constantes sociológicas” jamais provadas, que na imaginação do observador dirigem tudo anonimamente e sem intervenção humana. As causas geradoras desse erro são, grosso modo: Primeira: Reduzir as ações humanas a efeitos de forças impessoais e anônimas requer o uso de conceitos genéricos abstratos que dão automaticamente a esse tipo de abordagem a aparência de coisa muito científica. Muito mais científica, para o observador leigo, do que a paciente e meticulosa reconstituição histórica das cadeias de fatos que, sob um véu de confusão, remontam às vezes a uma autoria inicial discreta e quase imperceptível. Como o estudo dos fenômenos histórico-políticos é cada vez mais uma ocupação acadêmica cujo sucesso depende de verbas, patrocínios, respaldo na mídia popular e boas relações com o establishment, é quase inevitável que, diante de uma questão dessa ordem, poucos resistam à tentação de matar logo o problema com duas ou três generalizações elegantes e brilhar como sábios de ocasião em vez de dar-se o trabalho de rastreamentos históricos que podem exigir décadas de pesquisa. Segunda: Qualquer grupo ou entidade que se aventure a ações histórico-políticas de longo prazo tem de possuir não só os meios de empreendê-las, mas também, necessariamente, os meios de controlar a sua repercussão pública, acentuando o que lhe convém e encobrindo o que possa abortar os resultados pretendidos. Isso implica intervenções vastas, profundas e duradouras no ambiente mental. [Etc. etc. etc.] (no facebook em 17 de julho de 2013)